- E até quando acredita o senhor que podemos continuar nesse ir e vir do caralho? - perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinqüenta e três anos, sete meses e onze dias com respectivas noites.
- Toda a vida - disse.
Nossa, há quanto tempo... Como vão as coisas no seu pequeno planeta? Aqui, no meu, andam imensamente estranhas – muito baobá para pouca flor, se é que você entende meus simbolismos. Quem sempre fala de você é aquela ex-miss que vivia chorando por sua causa, lembra? Ela me contou da sua amizade com a Raposa.
Príncipe, como você é meu amigo de infância, não posso deixar de alertá-lo. Cuidado com a Raposa. Ela parece uma coisa, mas é outra. Faz-se de fofa e é uma cobra, uma chantagista.
Quando a conheci, ela disse que não podia conversar comigo, pois não sabia quem eu era. “A gente só conhece bem as coisas que cativou”, ela falou, toda insinuante. Respondi que, se nós duas nos cativássemos, ela ficaria triste quando eu fosse embora. Foi quando saquei que ela queria ter um cacho comigo, pois a Raposa pegou no meu cabelo – eu estava loira na época – e disse que tudo bem, porque ela olharia os campos de trigo e se lembraria de mim.
Marcamos um encontro para o dia seguinte, às 4. E ela me pediu para chegar às 4 em ponto, dessa forma ela ficaria feliz desde as 3 somente por esperar o momento do nosso encontro. Achei estranho, mas pensei que fosse charme. Não era.Cheguei 15 minutos atrasada e a Raposa surtou. Falou que nós somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos. E perguntou para mim, olhando diretamente nos meus olhos, se eu tinha consciência de que “perder tempo” com o outro é o que faz essa história importante.
Percebeu o tom de chantagem? Ela joga na cara tudo o que faz em nome do outro. Ela deseja afeto, mas o quer como uma responsabilidade de mão única. Porém, também somos responsáveis quando nos deixamos cativar – relacionamentos são vias de mão dupla.
A Raposa exige a certeza de um compromisso com hora marcada, impondo regras à troca afetiva. As regras dela, claro, já que ela quer todo o afeto a favor de seu bem-estar. Chega a ponto de dizer que será feliz porque você virá. Como se a felicidade fosse algo condicionado ao outro, à espera do outro, ao encontro com o outro.
Veja que coisa infantil. São as crianças que precisam de horários certinhos e de associar suas emoções às pessoas com quem se relacionam. Sentindo prazer ou desprazer diante da ausência ou presença da mãe ou do pai ou de quem quer que seja. Na criança, ainda não há um universo interior, entendeu? Quando nós crescemos, temos de conseguir ver o mundo através das próprias perspectivas. Enxergar a beleza de um trigal sem nos lembrar de ninguém.
A Raposa, como uma criança assustada, quer que aqueles que a amam estejam com ela na hora em que ela deseja. Achando que eles são “responsáveis” pela felicidade dela. Ou seja, o outro lhe deve algo por tê-la cativado.
No inicio era só desejo.
Desejo no pêlo cor de ouro.
Apenas um desejo.
Depois vieram chuvas.
Duas formas de chuvas.
Respectivos trovões com sons ensurdecedores
Não se podia ouvir o pedido de socorro.
Partiram-se em dois.
Ao som de um acordeom
Feito um pedido em forma de declaração
Palavras que caíram de uma boca marrom
Um aceno de cabeça
Sutil recusa
Palavras dissipadas
Dividiu-se em três.
Descobriu-se a confiança
Palavras e tempo necessários
Segredos de liquidificador entre lábios selados
O desejo da carne que fala
Perola negra se emaranhando nas curvas brancas
O branco da paz
Mutua paz...
Com a cumplicidade de um céu estrelado
Com a presença das próprias estrelas entre paredes
Foi-se consumado o mais puro desejo
O desejo do pêlo
Do pêlo cor de ouro, o pêlo de cor dourada.
O poder da disritmia...